Caminhar pelas ruas do Porto é como percorrer um museu a céu aberto onde as paredes dos edifícios são telas cerâmicas que contam histórias. Os azulejos, essas peças de cerâmica vidrada que decoram fachadas, interiores, igrejas e estações de comboio, são um dos elementos mais distintivos da identidade visual da cidade e de todo o património cultural português.
Como historiadora de arte e guia cultural no Porto há mais de uma década, tenho o privilégio de partilhar diariamente a fascinante história dos azulejos com visitantes de todo o mundo. Neste artigo, convido-vos a um passeio pela cidade através das suas mais notáveis obras-primas em cerâmica, numa viagem que atravessa séculos de história, técnicas artísticas e influências culturais.
A História do Azulejo em Portugal
Antes de iniciarmos o nosso roteiro, vale a pena compreendermos um pouco da história desta expressão artística tão portuguesa, apesar das suas origens estrangeiras.
A palavra "azulejo" deriva do árabe "az-zulayj", que significa "pedra polida". Esta etimologia revela logo a primeira influência na arte azulejar portuguesa: a herança mourisca. Os primeiros azulejos chegaram à Península Ibérica através dos árabes, que dominaram o território durante séculos.
No entanto, foi no século XVI que Portugal começou a desenvolver uma produção própria significativa, inicialmente influenciada pelas técnicas espanholas e italianas. A partir daí, a evolução foi notável:
- Século XV-XVI: Técnicas hispano-mouriscas, com padrões geométricos e cores limitadas.
- Século XVII: Influência holandesa com predominância do azul e branco, inspirada na porcelana chinesa.
- Século XVIII: Período áureo do azulejo português, com grandes painéis narrativos e cenas barrocas.
- Século XIX: Industrialização da produção, com padronagens para fachadas exteriores.
- Século XX-XXI: Renovação artística com artistas contemporâneos e novas aplicações urbanas.
O Porto, com a sua história de cidade mercantil e o seu crescimento significativo nos séculos XVIII e XIX, tornou-se um mostruário excecional desta evolução, especialmente nas aplicações de fachada que transformaram a paisagem urbana da cidade.
Características Distintivas dos Azulejos do Porto
Embora o azulejo seja um elemento nacional, o Porto desenvolveu algumas características próprias que distinguem os seus revestimentos cerâmicos:
- Predominância das fachadas exteriores: Enquanto em Lisboa os azulejos estão mais frequentemente em interiores de palácios e igrejas, no Porto conquistaram as ruas, revestindo por completo as fachadas dos edifícios.
- Padrões repetitivos: A produção semi-industrial do século XIX favoreceu padrões repetitivos que criam efeitos visuais fascinantes quando aplicados em grandes superfícies.
- Relevos e texturas: Muitos azulejos do Porto apresentam relevos e texturas que criam jogos de luz e sombra nas fachadas.
- Cores características: O tradicional azul e branco convive com padronagens de cores vibrantes, especialmente nas fachadas do século XIX.
Roteiro dos Azulejos do Porto
Agora que temos uma base histórica, vamos começar o nosso percurso pelos mais emblemáticos exemplos de azulejaria no Porto. Este roteiro pode ser feito ao longo de um dia inteiro, mas recomendo dividi-lo em duas manhãs ou tardes para poder apreciar cada local com calma.
1. Estação de São Bento
Estação de São Bento
Inaugurada em 1916, o átrio da estação é revestido com mais de 20.000 azulejos que retratam cenas históricas e da vida rural portuguesa. Obra do artista Jorge Colaço.
O nosso percurso inicia-se num dos mais espetaculares conjuntos azulejares de Portugal. O átrio da Estação de São Bento, desenhada pelo arquiteto Marques da Silva, é revestido por cerca de 20.000 azulejos pintados por Jorge Colaço, um dos maiores mestres azulejares do início do século XX.
Os azulejos, em tons de azul e branco, representam cenas históricas (como a entrada de D. João I no Porto com D. Filipa de Lencastre) e etnográficas (retratando costumes regionais, vindimas e feiras tradicionais). A execução técnica é notável, com uma qualidade pictórica que rivaliza com a pintura a óleo.
O que torna este conjunto especialmente interessante é o contraste entre a modernidade do edifício (uma estação ferroviária, símbolo do progresso industrial) e a representação nostálgica de um Portugal rural e tradicional – uma tensão que caracterizou o país na transição para o século XX.
2. Capela das Almas
Capela das Almas
Também conhecida como Capela de Santa Catarina, a fachada é completamente revestida com azulejos azuis e brancos retratando cenas da vida de São Francisco de Assis e Santa Catarina. Os azulejos são da Fábrica Viúva Lamego de Lisboa.
A curta distância de São Bento, na movimentada Rua de Santa Catarina, encontramos um verdadeiro ícone visual do Porto. A Capela das Almas (ou Capela de Santa Catarina) destaca-se pela sua fachada inteiramente revestida de azulejos azuis e brancos, representando cenas da vida de Santa Catarina e São Francisco de Assis.
Embora a capela date do século XVIII, o revestimento em azulejos foi aplicado no início do século XX (1929). Os painéis foram produzidos pela fábrica Viúva Lamego de Lisboa, seguindo desenhos do artista Eduardo Leite, e representam um interessante revivalismo da tradição azulejar do século XVIII num edifício neoclássico.
O que torna este conjunto tão fascinante é a sua dimensão e impacto visual. Em plena rua comercial, a capela surge como uma aparição celestial em azul e branco, criando um contraste marcante com o ambiente urbano envolvente.
3. Igreja do Carmo
Igreja do Carmo
A fachada lateral da igreja barroca do século XVIII é decorada com um enorme painel de azulejos criado por Silvestre Silvestri em 1912. O painel retrata cenas da fundação da Ordem do Carmo.
Continuando o nosso percurso, chegamos à Igreja do Carmo, um magnífico exemplar da arquitetura rococó portuguesa. O que torna este edifício especialmente relevante para o nosso roteiro é o enorme painel de azulejos na fachada lateral, virada para a Praça de Gomes Teixeira (conhecida como Praça dos Leões).
Este impressionante painel, criado pelo pintor Silvestre Silvestri em 1912, cobre toda a parede lateral da igreja e retrata cenas da fundação da Ordem do Carmo. É um dos maiores painéis de azulejos aplicados num edifício religioso no Porto.
Tecnicamente, os azulejos seguem a tradição do azul e branco, mas já com a precisão e técnicas do início do século XX. É interessante notar como a aplicação dos azulejos resolveu um problema arquitetónico: a parede cega que resultou da construção adjacente da Igreja das Carmelitas, transformando uma potencial limitação estética numa oportunidade para criar uma obra de arte pública.
4. Livraria Lello
Livraria Lello
Embora famosa pela sua escadaria e arquitetura neogótica, a Livraria Lello apresenta pequenos detalhes em azulejo Art Nouveau que complementam a decoração interior.
A poucos passos da Igreja do Carmo encontramos a mundialmente famosa Livraria Lello. Embora seja conhecida principalmente pela sua espetacular escadaria e decoração neogótica, a livraria apresenta detalhes interessantes em azulejo, especialmente no seu estilo Art Nouveau.
Os detalhes em azulejo podem ser observados em alguns elementos decorativos no interior da livraria, representando um exemplo de como esta arte tradicional portuguesa foi incorporada mesmo em espaços arquitetónicos que seguiam tendências internacionais como o Art Nouveau.
5. Café Majestic
Café Majestic
Este café histórico em estilo Art Nouveau, inaugurado em 1921, apresenta azulejos decorativos que complementam a sua ornamentação interior luxuosa.
Retornando à Rua de Santa Catarina, encontramos o histórico Café Majestic, um dos mais belos exemplares da Belle Époque no Porto. Embora a decoração principal seja em madeira esculpida e espelhos, o café apresenta elementos em azulejo que complementam o seu estilo Art Nouveau.
O Majestic representa a aplicação mais sofisticada e cosmopolita do azulejo, distante dos painéis tradicionais religiosos ou históricos, incorporando-o como elemento decorativo num espaço de socialização da burguesia portuense do início do século XX.
6. Fachadas da Rua das Flores e Mouzinho da Silveira
Rua das Flores e Mouzinho da Silveira
Estas ruas históricas do centro do Porto contêm dezenas de edifícios do século XIX com fachadas revestidas de azulejos padronizados, representando a era de ouro da aplicação de azulejos em arquitectura residencial.
Descendo em direção ao rio, percorremos a Rua das Flores e a Rua Mouzinho da Silveira, duas artérias históricas do centro do Porto. Aqui encontramos o que torna a azulejaria do Porto verdadeiramente única: dezenas de fachadas completamente revestidas com azulejos padronizados do século XIX.
Estes azulejos, produzidos industrialmente em fábricas como a Massarelos, Devesas e Carvalhinho, eram aplicados não apenas como elemento decorativo, mas também funcional, oferecendo impermeabilização e isolamento térmico aos edifícios. A diversidade de padrões é impressionante, com motivos geométricos, florais e abstratos, em diversas combinações cromáticas.
O mais fascinante nestas ruas é observar como os azulejos transformam a paisagem urbana. Em dias ensolarados, as fachadas cintilam como joias coloridas; em dias chuvosos, ganham um brilho lavado que contrasta com o granito cinzento tão característico da cidade. É a combinação perfeita entre funcionalidade e estética, pragmatismo nortenho e sensibilidade artística.
7. Palácio da Bolsa
Palácio da Bolsa
Este imponente edifício neoclássico, antiga Bolsa Comercial do Porto, apresenta aplicações de azulejos em áreas específicas, incluindo exemplares notáveis no Pátio das Nações.
Chegando à Ribeira, visitamos o Palácio da Bolsa, sede histórica da Associação Comercial do Porto. Este imponente edifício neoclássico, embora não seja primariamente conhecido pelos seus azulejos, apresenta aplicações interessantes desta arte em áreas específicas.
O mais notável é o Pátio das Nações, o átrio central coberto com uma majestosa claraboia de vidro e ferro. As paredes superiores deste espaço são decoradas com brasões em azulejos representando os países com os quais Portugal mantinha relações comerciais no século XIX.
Esta aplicação específica demonstra como o azulejo servia também como elemento de comunicação visual e afirmação identitária, neste caso sublinhando a importância do Porto como cidade comercial internacional.
8. Igreja de Santo Ildefonso
Igreja de Santo Ildefonso
A fachada barroca desta igreja do século XVIII é revestida com aproximadamente 11.000 azulejos que retratam cenas da vida de Santo Ildefonso e alegóricas ao Evangelho. Os azulejos foram aplicados em 1932, criados por Jorge Colaço.
Subindo novamente em direção ao centro, encontramos a Igreja de Santo Ildefonso, um impressionante exemplo de igreja barroca cuja fachada é completamente revestida por azulejos. Cerca de 11.000 azulejos azuis e brancos, aplicados em 1932, cobrem a fachada e a torre da igreja.
Os azulejos, também da autoria de Jorge Colaço (o mesmo artista responsável pelos painéis da Estação de São Bento), representam cenas da vida de Santo Ildefonso e figuras alegóricas do Evangelho. A aplicação dos azulejos transformou radicalmente a perceção do edifício, conferindo-lhe uma luminosidade e visibilidade únicas na paisagem urbana.
É interessante notar que, tal como na Capela das Almas, estes azulejos foram aplicados já no século XX, numa espécie de "reinterpretação" do edifício barroco original através da linguagem azulejar tradicional portuguesa.
Museus e Locais para Aprofundar o Conhecimento
Para os verdadeiramente apaixonados pela arte azulejar, o Porto oferece também alguns museus e espaços onde é possível aprofundar o conhecimento sobre esta expressão artística:
Museu Nacional Soares dos Reis
Museu Nacional Soares dos Reis
O primeiro museu público de arte em Portugal, fundado em 1833, possui uma importante coleção de azulejos históricos desde o século XVI até à atualidade.
O mais antigo museu público de Portugal alberga uma importante coleção de azulejaria portuguesa, com exemplares desde o século XVI até produções mais contemporâneas. A coleção é particularmente rica em azulejos provenientes de palácios e conventos desativados após a extinção das ordens religiosas em 1834.
Banco de Materiais da Câmara Municipal do Porto
Banco de Materiais
Este espaço municipal, criado em 1992, recolhe e preserva elementos arquitetónicos históricos da cidade, incluindo uma impressionante coleção de azulejos de fachada dos séculos XIX e XX.
Este espaço municipal menos conhecido é um verdadeiro tesouro para os apaixonados por azulejaria. Criado em 1992 com o objetivo de preservar elementos arquitetónicos históricos do Porto, o Banco de Materiais possui uma impressionante coleção de azulejos de fachada dos séculos XIX e XX.
O mais interessante é que este não é apenas um museu: o Banco funciona como um repositório vivo, emprestando azulejos antigos para restauro de fachadas históricas, garantindo assim a preservação da autenticidade visual da cidade.
Preservação e Desafios Contemporâneos
Enquanto percorremos o Porto admirando estas jóias cerâmicas, é importante refletir sobre os desafios que a preservação deste património enfrenta atualmente:
- Roubo e vandalismo: Infelizmente, o valor crescente dos azulejos históricos no mercado de antiguidades tem levado a um aumento de furtos, especialmente em edifícios abandonados.
- Pressão imobiliária: A recente valorização imobiliária do centro histórico do Porto tem resultado, por vezes, em reabilitações que não respeitam os elementos originais dos edifícios, incluindo as fachadas em azulejo.
- Falta de artesãos qualificados: O restauro adequado de azulejos históricos requer conhecimentos técnicos específicos, e há uma escassez crescente de artesãos com estas competências.
- Consciencialização: Muitos proprietários desconhecem o valor histórico e artístico das fachadas azulejadas e optam por soluções mais económicas em reabilitações.
Felizmente, várias iniciativas têm surgido para contrariar estas tendências, incluindo legislação mais rigorosa para a proteção das fachadas históricas, projetos de inventariação como o "SOS Azulejo", e programas de formação para novos artesãos especializados em conservação e restauro.
O Futuro do Azulejo no Porto
Apesar dos desafios, o azulejo continua a ser uma expressão artística viva no Porto. Vários artistas contemporâneos têm reinterpretado esta tradição centenária, criando intervenções urbanas que dialogam com o património existente.
Um exemplo notável é o trabalho do artista portuense Diogo Machado (Add Fuel), que cria azulejos contemporâneos com padrões tradicionais "hackeados", introduzindo elementos modernos e irreverentes que surpreendem o observador atento.
Outro exemplo é a Estação de Metro da Trindade, onde o artista plástico Eduardo Nery criou em 2005 um revestimento contemporâneo em azulejos que dialoga com a tradição mas introduz uma linguagem visual contemporânea.
Conclusão: Um Património Vivo
O roteiro que aqui apresentei é apenas uma introdução ao fascinante universo dos azulejos do Porto. Cada rua da cidade esconde pequenos tesouros cerâmicos, desde impressionantes painéis históricos até padrões geométricos modestos que, no seu conjunto, criam uma identidade visual única.
O que torna os azulejos do Porto verdadeiramente especiais não é apenas o seu valor artístico individual, mas a forma como se integram organicamente na vida da cidade. Não são peças de museu isoladas do quotidiano, mas elementos vivos que interagem com a luz, as condições atmosféricas e o olhar sempre renovado de quem passa.
Ao contrário de muitas expressões artísticas históricas, o azulejo no Porto é um património democrático, acessível a todos nas ruas da cidade. Da mesma forma que os azulejos protegem e embelezam os edifícios que revestem, eles também "revestem" a identidade cultural coletiva da cidade e dos seus habitantes.
Na Portugal Guias Locais oferecemos tours especializados focados na arte azulejar do Porto, onde aprofundamos ainda mais a história, técnicas e contextos desta expressão artística. Convidamo-lo a descobrir connosco o Porto através das suas "telas de cerâmica", numa viagem que é simultaneamente uma lição de história, arte e identidade portuguesa.
Da próxima vez que passear pelo Porto, reserve algum tempo para olhar para cima e para os lados – as paredes têm muito para contar!